CircuitoMT - Edição 660 - page 11

POLÍCIA
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CIRCUITOMATOGROSSO
CUIABÁ, 30 DE NOVEMBRO A 6 DE DEZEMBRO 2017
O ÓDIO QUE MATA
Já foram 14 homicídios contra LGBTs
Estado busca politicas públicas e na área de segurança, para diminuir esses números de crimes de intolerância à diversidade sexual
e melhorar o atendimento nos casos
Por Jefferson Oliveira
m jovem de 18 anos foi agredido
e teve o braço e a perna quebrados
por uma gangue de garotos, lide-
rada por um suspeito conhecido
como “Bracinho”. Ele apenas ca-
minhava na rua principal do bair-
ro Bom Jardim, em Sinop, quando foi vítima da
violência, no dia 12 de novembro. O crime ainda
está sendo investigado e ninguém foi preso.
Em Primavera do Leste (239 km da capital)
no dia 7 de abril a travesti Bianca Gonçalves, de
22 anos, não teve tanta sorte. Ela foi vítima de la-
trocínio – roubo seguido de morte, enquanto
trabalhava com outras travestis em um
ponto de prostituição, às margens
da MT-130. Nenhum suspeito foi
preso até o momento.
Ambos os crimes engros-
sam as estatísticas que fazem de
Mato Grosso campeão de crimes
contra lésbicas, gays, bissexuais,
travestis e transexuais (LGBT),
no Centro-Oeste. Em 2017, o esta-
do registrou 14 homicídios que envol-
veram LGBT, ou seja, mais de um homi-
cídio por mês. De acordo com o major da Polícia
Militar (PM)
Ricardo Bueno
, do Grupo Estadual
de Combate aos Crimes de Homofobia (GEC-
U
CH), “os boletins de ocorrência com os campos
de motivação do crime, nome social e orientação
sexual colaboram com a investigação policial”.
A pasta que ele comanda na Secretaria Esta-
dual de Segurança Pública (Sesp) tem justamente
como uma das funções analisar esses homicídios
e outros crimes relacionados ao público homosse-
xual e acompanhar o desdobramento desses e ou-
tros crimes que carregam em si um forte traço de
preconceito contra a orientação sexual do outro.
O major Bueno informou em conversa exclu-
siva com o
Circuito Mato Grosso
que, dispara-
do, os maiores números de ocorrências são as que
envolvem injúria e agressões. “Esse tipo de crime
nós analisamos antes de quantificar como de
fato homofobia. O crime de homofobia
é mais profundo, não uma simples
discussão na qual alguém é xinga-
do de ‘veado’, por exemplo”, ex-
plicou o major.
O secretário da (GECCH) re-
latou que estudos da Organização
Mundial de Saúde apontam que
10% da população mundial sejam
compostos por homossexuais. Em
Mato Grosso, daria um número apro-
ximado de 350 mil homossexuais.
“É um número impreciso esse, pois muitos
acabam se camuflando, seja por causa do servi-
ço ou da família. Ainda no Brasil há um grande
tabu e alguns homens, por exemplo, são casados
vivem como héteros, mas saem com outros ho-
mens e por isso o número acaba não sendo exato”,
explicou Bueno.
Entre os 14 homicídios envolvendo homosse-
xuais no estado, dois homens heterossexuais fo-
ram assassinados em crimes que tiveram a homo-
fobia como plano de fundo. João Bosco da Silva,
51, morreu no dia três de agosto no município de
Comodoro (453 km de Cuiabá), após zombar do
oão Batista de Souza Francisco, 18,
mora com a mãe em Várzea Grande
(Região Metropolitana da capital), po-
rém a sua convivência com a genitora é
conturbada, tendo em vista que a mãe
e os demais parentes não aceitam que João seja
homossexual e nem viva como uma travesti.
“Isso é ruim, não só comigo, mas com qual-
quer outra pessoa que seja homossexual, gay,
lésbica, travesti, pois a pessoa acaba tendo que
viver escondida, com amargura, sem amigos.
Fica presa a uma realidade que não é dela, pois
não tem apoio da família, que é o pilar de tudo.
Vira uma pessoa bonita por fora e magoada por
J
dentro”, revela João.
Atendendo pelo nome de “Gabi”, ela revela
que já foi ameaçada de morte pelo seu tio, irmão
da sua mãe.
“Ele já me agrediu fisicamente, me ameaçou de
morte, disse que não aceita o meu jeito, e a mesma
coisa ocorre com a minha mãe. Ela não aceita de
maneira alguma que eu me relacione com outros
homens, que tenha amigos gays. A família fica re-
primindo, sofromuita humilhação dentro da minha
própria casa e dos meus próprios familiares”.
A jovem travesti registrou boletim de ocor-
rência contra a família. A motivação foram as
ameaças, agressões e humilhações sofridas. Seu
caso está sendo acompanhado de perto pela equipe
do GECCH.
Gabi já se prostituiu algumas vezes no passado,
porém hoje em dia não vende mais o corpo. “Já
tomei hormônios para fazer crescer os seios, mas
isso acarretou problemas em meu corpo, fui pela
cabeça dos outros, sem realizar alguma consulta
médica ou avaliação antes e isso me prejudicou”,
revela.
Ela acredita que ao revelar a sua história possa
incentivar outras pessoas a se assumirem, inde-
pendentemente do apoio da família. “As pessoas
precisam se libertar e viver como desejam e se
sentem bem, sem viver presas em um mundo e
ficar na tristeza. Muitos gays se mostram pessoas
fechadas, mas poucos sabem o que se passa ou
passou na vida da pessoa para que ela passasse a
viver desse modo”.
O maior desejo que Gabi apresentou, em con-
versa com o jornal, é de poder trabalhar, concluir
os estudos e sair de casa. Ela quer poder levar uma
vida independente e sem preconceitos.
“Quero ter a minha casa, levar a minha vida
normalmente, ter amizades, conversar, poder re-
ceber em casa e ter uma vida social como qualquer
outra pessoa e livre de preconceitos. Eu entendo os
dois lados, mas se deve haver respeito entre todos,
pois ninguémémelhor do que ninguém”, sintetizou.
companheiro de trabalho Hilton César de Arruda.
Hilton tomava remédios para dormir, quan-
do acordava sentia dores na região anal, a vítima
João Bosco fazia piadas sobre as dores do seu co-
lega de trabalho e brincava informando que havia
feito sexo anal no amigo enquanto ele dormia.
Irritado, Hilton sacou um revólver e atirou cinco
vezes contra a vítima, sendo que alguns disparos
acertaram a cabeça. O suspeito se entregou e con-
fessou o crime.
Crimes de desespero
homossexuais. Em Mato Grosso do Sul, houve
sete homicídios, no Distrito Federal o mesmo
número e em Goiás 11 mortes até o momento.
Os números são do banco de dados virtual
da Homofobia e Transfobia no Brasil e são
divulgados pelo Grupo Gay da Bahia (GGB),
que é a mais antiga associação de defesa dos
direitos humanos dos homossexuais no Brasil.
Fundado em1980, é uma entidade guarda-chu-
va que oferece espaço para outras entidades da
sociedade civil que trabalham em áreas simi-
lares, especialmente no combate à homofobia
e prevenção do HIV entre a comunidade e a
população em geral.
m outro caso, que também demonstra
o forte preconceito nacional sobre
o tema, aconteceu no bairro Jardim
Uirapuru, em Tangará da Serra (242
km de Cuiabá), no dia 14 de outubro deste ano.
Um adolescente de 17 anos tirou a vida do
próprio pai, identificado como Manoel Fran-
cisco de Souza, 35. O rapaz, que se declarou
homossexual à polícia, teria pegado uma faca
para matar pessoas que estavam rindo dele
na rua, mas foi impedido pelo pai de cometer
o crime e acabou assassinando o seu genitor.
Nos demais crimes de homicídios as víti-
mas foram seis travestis, uma lésbica e cinco
E
Jefferson Oliveira
Travestis são os mais vulneráveis
decretada pela Justiça e foi detido em casa,
no dia 3 de setembro, no bairro Osmar Cabral,
periferia de Cuiabá.
Além de Natália, outras travestis foram
mortas por motivos fúteis e preconceito. Em
Rondonópolis (212 km de Cuiabá), a travesti
Tabata Brandão foi morta após ser insultada
com outras travestis.
Valdinei Souza da Silva, 24 anos, foi preso
dia 25 de setembro acusado de matar Tabata.
A travesti, de 30 anos, foi morta a tiros, após
uma discussão. Valdinei teria xingado a vítima
e outras travestis na rua. Tabata, por sua vez,
revidou as agressões verbais. O suspeito foi
em casa pegar uma arma de fogo e voltou para
cometer o crime.
O secretário da GECCH disse que há uma
diferença entre homossexualidade e transexua-
lidade e que o preconceito e a falta de políticas
públicas dificultam o acesso das travestis ao
mercado formal, ensino e educação. De acordo
com a Associação Nacional de Travestis e Tran-
sexuais (Antra), apenas 10% dos transexuais no
Brasil têm emprego formal.
major Ricardo Bueno relatou durante
a entrevista que as travestis são as
principais vítimas, principalmente
devido ao universo de total desinfor-
mação a que são relegadas. “Elas geralmente,
por muitos fatores, sociais, econômicos e pes-
soais, acabam não tendo uma formação mais
elevada. Por conta do preconceito sofrido,
abandonam estudos, não conseguem bons
empregos na maioria das vezes, e acabam
tendo como profissão a prostituição em locais
perigosos”, informou ele.
O secretário relatou que uma das soluções
seria a criação de políticas públicas para as
trans. “Elas ainda são vistas por grande parte
da sociedade como ‘diferentes’, marginalizadas
e prostitutas. As pessoas acabam abusando,
pois quem comete um crime contra essas pes-
soas acha que por ser travesti ninguém vai se
importar. Mas é uma vida e tem valor como
qualquer outra”, completou.
O major Bueno relembrou o caso da tra-
vesti
Thiago da Costa Assunção Corrêa
, 22,
conhecida como “Natália Pimentel”. Natália
foi brutalmente atropelada por se recusar a
fazer um programa com um cliente no valor de
R$ 17,00. “Isso é inadmissível, a vida dela foi
ceifada por menos de 20 reais. Um programa
não realizado e acabou perdendo a vida. E a
motivação foi por ela ser travesti”.
Natália foi morta dia 25 de julho de 2017
no ponto de prostituição conhecido como
Zero Quilômetro, em Várzea Grande. O autor
do crime, Thiago Marques, 28, teve a prisão
O
Polícia reconheceu a motivação homofobia em 2009
homofobia no estado.
“Em 2009 foi incluso no boletim de ocorrên-
cia a motivação homofobia, já em 2010 acres-
centou-se o nome social e no ano de 2016 foi
incluso nos boletins de ocorrência a orientação
sexual, e esses termos têm dado um amparo
maior às vítimas de homofobia, fazendo com
que as pessoas criem coragem para denunciar”,
explicou Bueno.
O acesso à informação tem feito com que
mais pessoas procurem a delegacia, informou
Bueno, e também com o acompanhamento
que as vítimas têm por meio do GECCH têm
aumentado as denúncias em relação ao crime
de homofobia.
“Até os crimes praticados pela internet têm
sido denunciados, as vítimas podem saber que
quando chegarema uma delegacia ou solicitarem
um apoio policial, elas terão um atendimento
digno, sem distinção de cor, raça, credo ou sexu-
alidade, pois como servidor público ele está ali
para atender o povo”, completou o major.
Para finalizar, ele revela que o GECCH não
está querendo que o servidor aceite ou “engula”
o modo de vida do LGBT, mas, sim, que o atenda
sem preconceito.
“Não queremos que ninguém seja obrigado a
aceitar nada, mas sim que haja respeito múltiplo
das partes, que o policial saiba se dirigir à vítima
da melhor maneira possível e saiba tratar com
cordialidade, bom- dia, boa-tarde, em que posso
ajudar, exercendo apenas o papel de servidor
público”, disse.
ma das atribuições do GECCH é quali-
ficar os servidores públicos do estado,
para o atendimento com as vítimas
LGBT. A Polícia Militar, que sempre é
chamada para atender as mais variadas situa-
ções do cotidiano, também recebe a qualificação
desde o curso preparatório na academia de
formação de praças e oficiais.
“Já quando está se formando, o policial re-
cebe formação para saber como lidar e atender
os casos que envolvemo público LGBT e pessoas
em situação de vulnerabilidade. A Secretaria
Nacional de Segurança Pública (Senasp) desen-
volveu uma cartilha em que explica os termos
e tipos de abordagem e como lidar com esse
público”.
A cartilha desenvolvida pelo Senasp explica
que o termo LGBT é contração dos termos: lésbi-
cas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, e
é utilizado para identificar todas as orientações
sexuais minoritárias e manifestações de identi-
dades de gênero divergentes do sexo designado
no nascimento.
O policial deve respeitar a identificação
social feminina caracterizada pela vestimenta e
acessórios femininos de uso da pessoa aborda-
da. Deve utilizar termos femininos ao se referir
à travesti e mulheres transexuais – tais como:
senhora, ela, dela.
O major relatou também a inclusão de no-
menclaturas na hora de confeccionar o boletim
de ocorrência que tem ajudado as forças de
segurança a elucidar e investigar os crimes de
U
Ala LGBT nos presídios de Mato Grosso
espaço destinado à população LGBT privada de
liberdade. A ala Arco-íris, no Centro de Ressociali-
zação de Cuiabá (antigo presídio do Carumbé) foi
criada em2012 e abriga atualmente 31presos entre
transexuais, gays e travestis. Os presos da ala par-
ticipam de diversas atividades de ressocialização
desenvolvidas na unidade. A Instrução Normativa
foi criada em conformidade com tratados inter-
nacionais de direitos humanos dos quais o Brasil
é signatário, além das legislações federais sobre
execução penal e sistema penitenciário e o que es-
tabelecemas regras da Política Nacional de Atenção
Integral à Saúde das Pessoas Privadas no Sistema
Prisional e a Política Nacional de Saúde Integral de
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais.
Ainda não existe esse tipo de separação em outros
presídios masculinos nem femininos.
secretário de Estado de Justiça e Direi-
tos Humanos, Fausto Freitas, assinou
nesta quarta-feira (29) uma Instrução
Normativa que estabelece parâmetros
de acolhimento e atendimento à população LGBT
no Sistema Prisional de Mato Grosso.
A instrução define a criação de espaços de
convivência da população LGBT no Sistema Pe-
nitenciário, que deverão ser implementados nas
unidades polos regionais, contribuindo para que
o recuperando tenha acesso ao direito de cumprir
a pena em local próximo ao município de seus
familiares. A transferência da pessoa privada de
liberdade para o espaço de convivência específico
ficará condicionada à sua expressa manifestação
de vontade.
Mato Grosso é pioneiro no país ao criar um
O
Preconceito na família
1...,2,3,4,5,6,7,8,9,10 12,13,14,15,16,17,18,19,20
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