CIRCUITOMATOGROSSO
CUIABÁ, 3 A 9 DE ABRIL DE 2014
CIDADES
P
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Em resposta à pesquisa do Ipea, que aponta
condescendência de parte da sociedade em relação aos
estupradores, a funkeira Valeska Popozuda também
entrou na luta pela liberdade feminina postando no
Facebook uma foto em que aparece nua, apenas com um
taco de beisebol, com a mensagem: “De saia longa ou
pelada, não mereço ser estuprada”.
VIOLÊNCIA SEXUAL
Estupros
aumentam
523% em
dez anos
Número contempla casos cujas vítimas são homens e mulheres e
ajuda a explicar o preconceito que transforma vítima em culpada
Diego Frederici
Numa sociedade
patriarcal, cuja realidade
da dinâmica das relações
entre as pessoas é pautada
pela supremacia e
interesses apenas da
figura masculina, a mulher
acaba sendo subjugada,
ficando à mercê apenas
das vontades dos homens.
Uma das consequências
disso é a hostilidade física
e psíquica da qual a
população feminina é
vítima e que,
paradoxalmente, também
atinge o público
masculino, traduzido pelo
aumento de 523% de
casos de estupro, de 2003
a 2013, em Mato Grosso.
Os dados da
Secretaria de Estado de
Segurança Pública (Sesp-
MT) dizem respeito tanto
a vítimas masculinas
quanto femininas. Em
2003 houve 223 casos de
estupro em Mato Grosso.
Ao longo dos anos, esses
números chegaram a cair,
como em 2004 e 2005,
que registraram 217 e 199
ocorrências,
respectivamente. Depois
desse período, no entanto,
esses índices não pararam
de subir, culminando com
um aumento preocupante
desse tipo de crime: em
2013, 1.390 pessoas
foram estupradas no
Estado.
O explosão de casos
de estupro em Mato
Grosso encontra
ressonância num recente
levantamento feito pelo
Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada
(Ipea), órgão ligado à
Secretaria de Assuntos
Estratégicos da
Presidência da República,
divulgados no último dia
27 de março. O estudo
revela que 58,5% das
pessoas entrevistadas
concordam totalmente ou
parcialmente com a frase
“Se as mulheres
soubessem como se
comportar, haveria menos
estupros”.
O dado acima ajuda a
compreender o
preconceito que acomete
essas pessoas, além da
lógica perversa de se
culpar as vítimas. Porém,
outro aspecto ainda mais
chocante, também
levantado nessa mesma
pesquisa, mostra o
quanto o Estado ainda
está longe de oferecer às
mulheres as condições de
igualdade previstas na
Constituição de 1988:
65,1% das pessoas
concordam total ou
parcialmente que
“mulheres que usam
pouca roupa merecem ser
atacadas”.
A pesquisa, no
entanto, aponta dados
antagônicos. A grande
maioria – 76,4% das
pessoas entrevistadas –,
por exemplo, discorda
totalmente da afirmação de
que um “homem pode
xingar ou gritar com sua
própria mulher”. Além
disso, quando perguntado
se “homem que bate em
mulher deve ir para
cadeia”, mais de 78% das
pessoas concordam
totalmente com a
afirmação.
Questionados,
entretanto, se “casos de
violência dentro de casa
devem ser discutidos
somente entre os membros
da família”, 63% das
pessoas responderam
concordando total ou
parcialmente com a
afirmação.
De acordo com o
mesmo estudo do Ipea,
utilizando como base
dados de 2011 do
Ministério da Saúde, cerca
de 88,5% das vítimas dos
estupros eram mulheres.
Mais da metade delas
tinham menos de 13 anos
e que, anualmente, mais de
527 mil pessoas são
estupradas no Brasil.
“A mulher nunca é culpada”, afirma delegada
Os recentes avanços
da sociedade brasileira, que
experimentou ao longo da
última década melhorias no
poder econômico e de
consumo, parecem ainda
não ter atingindo noções
básicas de cidadania e
respeito ao próximo,
expressos na pesquisa do
Ipea, demonstrando o
grande preconceito que as
vítimas de estupro ainda
sofrem, tendo em vista
que, para muitas pessoas,
elas ainda são culpadas
pela violência que as
acomete. No entanto, para
a Delegada Titular da
Delegacia de Defesa da
Mulher de Cuiabá, Cláudia
Maria Lisita, “a mulher
nunca é culpada”.
De acordo com a
servidora, as mulheres
ainda encontram
dificuldades em denunciar
essas práticas de violência
sexual pois a experiência é
“muito traumática”,
afirmando que, muitas
vezes, elas preferem
esconder o acontecido,
“passando uma borracha”,
para não reviver
novamente o episódio. No
entanto, quando indagada
qual o caminho que elas
devem seguir quando
passam por esse tipo de
situação, a especialista em
direitos femininos é
enfática na resposta: “O
melhor caminho é a
denúncia. Entendemos que
muitas situações
complexas, como
dependência financeira e
emocional podem deixá-las
na dúvida, mas quando o
estupro acontece uma vez,
geralmente há
reincidência”.
Lisita pondera ainda o
tratamento diferenciado
que homens e mulheres
têm na sociedade,
comparando o tipo de
vestes masculinas e
femininas: “Quando um
homem sai apenas de
bermuda na rua não passa
pela cabeça de ninguém
atacá-lo. Mas uma mulher
que usa um short deve ter
tratamento diferente? A
mulher deve ter liberdade”.
Segundo a delegada
titular, o departamento
conta com uma estrutura
de atendimento especial a
essas pessoas, tendo em
vista o estado de
“vulnerabilidade” em que
elas se encontram ao
chegar ao local.
Sublinhando que o único
culpado desse tipo de
violência é o estuprador,
ela dá algumas dicas às
mulheres, como tomar
cuidado ao aceitar caronas
de pessoas estranhas e
evitar fazer corridas e
caminhadas antes do
nascer do sol ou tarde da
noite, além do recurso do
disque-denúncia.
“As mulheres que
queiram denunciar podem
telefonar para o 197,
número da Polícia Civil ou,
em casos de emergência,
recorrer ao 190, da Polícia
Militar”, informa.
Fotos: Mary Juruna
Temos uma sociedade
que se sustenta em três
pilares: um deles, o
capitalismo, diz respeito à
exploração dos seres
humanos pelo trabalho, ou
seja, enriquecimento de
poucos em decorrência da
produtividade material de
muitos. O segundo é o
eixo da etnia, que
expressa as segregações e
preconceitos de raça. E o
terceiro, o patriarcado,
que tem como principal
consequência o
machismo, que ultrapassa
classes sociais.
A afirmação é da
assistente social e
pesquisadora do Núcleo
Interinstitucional do
Estudo da Violência e
Cidadania (Nievci) da
Universidade Federal de
Mato Grosso (UFMT),
Vera Bertolini, que
recebeu a equipe do
Circuito Mato Grosso
para uma entrevista em
sua residência.
A acadêmica, mestre
em Política Social, afirma
que as três características
citadas acima, observadas
em nossa sociedade,
ajudam a explicar a culpa
Machismo ultrapassa classes sociais
que algumas pessoas
atribuem às vítimas de
estupro. De acordo com
ela, a sociedade “espera,
qualifica e cobra” alguns
componentes denotados
só aos homens, como
força, racionalidade e
dominação, ao passo que,
às mulheres, sobram
características menos
nobres, como fragilidade,
submissão, dependência e
realização por meio da
maternidade e pelo
cuidado com o espaço
doméstico.
“Enquanto o
capitalismo diz respeito a
práticas materiais,
racismo e machismo vão
na linha cultural da nossa
sociedade. É preciso
desmobilizar essas
práticas, e a escola tem
um papel central nessa
questão”, analisa.
Segundo a cientista
social, não basta
criminalizar práticas
derivadas do machismo,
como a violência sexual e
física que atinge
mulheres. Segundo ela, a
escola precisa dar um
novo sentido a alguns
conceitos há muito
entranhados na sociedade,
como a imagem da
“família nuclear”,
composta por pai, mãe e
irmãos, caracterização
que, segundo ela, “está
completamente descolada
da realidade”, tendo em
vista os vários tipos de
famílias que existem na
sociedade.
“Os espaços
ideologizados passam por
uma formação que
diferencia meninos e
meninas. O próprio
conteúdo formal,
repassado nas escolas,
reforça esse tipo de
comportamento. No
futuro, essa prática
culmina com o tratamento
desigual dado a homens e
mulheres”, diz.
Bertolini afirma
também que outros
espaços de troca de
experiências, além da
escola, também são
importantes na luta pela
emancipação feminina,
como a igreja e “todos os
seus preconceitos”, o
Judiciário e até mesmo o
Congresso Nacional, que
ainda se recusa a discutir
questões urgentes como o
aborto.
“No caso do aborto,
os congressistas preferem
se calçar sobre uma falsa
moral, pois duvido que
entre os deputados e
senadores que lutam
contra a discussão não há
aqueles que já pagaram
pelo procedimento para
suas amantes ou até as
próprias esposas”,
conclui.
Estudo do Ipea afirma
que para 58,5% das
pessoas, se as mulheres
soubessem se
comportar, haveria
menos estupros
Para a delegada titular da
Delegacia de Defesa da
Mulher de Cuiabá, Cláudia
Lisita, o melhor caminho
para as vítimas é a
denúncia por meio do 197
Pesquisadora da UFMT
afirma que escola precisa
repensar significados que,
apesar de enraizados na
sociedade, estão descolados
da realidade