CIRCUITOMATOGROSSO
CUIABÁ, 14 A 20 DE FEVEREIRO DE 2013
CULTURA EM CIRCUITO
PG 5
UM ALFAIATE E UM OURIVES VIAJAVAM JUNTOS
Clóvis é historiador e
Papai Noel nas horas vagas
INCLUSÃO LITERÁRIA
Por Clovis Mattos
Anna é doutora em
História, etnógrafa e filatelista.
TERRA BRASILIS
Por Anna Maria Ribeiro Costa
E POR FALAR EM CARNAVAL...
Com o término do Carnaval, que
dizem ter origem na Grécia, quando os
gregos agradeciam aos deuses
pela fertilidade do solo e fartura
de alimentos, nada como
continuar a falar em festas. Os
povos indígenas têm festejos para
a colheita, a chegada da
puberdade feminina e masculina,
o casamento, a morte.
O povo Nambiquara possui
instrumentos musicais, todos de
sopro, tocados em situações
especiais: apito de cabaça, flauta
de pã, flauta nasal, flauta dupla e
flauta reta. A flauta reta, tocada
somente pelos homens, é a única
considerada sagrada, envolta em
muitos tabus, especialmente no que diz
respeito às mulheres, que são proibidas de
tocá-la e, até mesmo, de avistá-la.
Mas não há proibições em relação à
flauta dupla, a flauta da alegria,
semelhante a um apito. Ela é feita
com pequenos tubos de bambu
amarrados com corda fina de
tucum, que possuem defletores de
cera no meio do instrumento,
permitindo ser soprado por
quaisquer das extremidades. De
confecção e uso masculinos, hoje
está entre os instrumentos musicais
pouco entoados pelos índios.
Sua origem vem lá das
histórias de antigamente, do
tempo mítico. O grilo, o dono da
flauta dupla, tocava melodias
muito bonitas. Atraído pela música
que soava ao longe, o lobinho-do-campo
chegava até o grilo para ouvir o som bem
de perto. O grilo não gostava e sempre
encontrava um jeito de esconder sua flauta.
Por várias vezes o lobinho-do-campo
tentava ver o grilo tocar, mas nunca
conseguia. O grilo, rapidamente, escondia
seu precioso instrumento musical e ainda
mentia dizendo-lhe que não sabia quem
entoava a melodia ouvida de lugares tão
longínquos.
Sorrateiramente e já sem paciência, o
lobinho chegou pertinho do grilo e
surrupiou a flauta da alegria, tão desejada.
O grilo ficou furioso e saiu atrás do lobinho
até alcançá-lo e quando conseguiu ter
novamente sua flauta, percebeu que estava
quebrada. Deste dia em diante, o grilo
nunca mais conseguiu tocar sua flauta
como antes. Agora entoa uma melodia
triste, vinda das palhas secas da casa dos
índios: cri, cri, cri... cri, cri, cri...
A lua já se erguera quando os dois
caminhantes alcançaram uma colina de onde
divisaram uma porção de pequenos homens e
mulheres. Davam-se as mãos e rodopiavam
com grande alegria, numa farândola
animada. Cantavam ao mesmo tempo uma
linda melodia. No meio da reunião, estava
sentado um velho, um pouco mais alto que os
demais cuja longa barba branca se espalhava
pela frente do seu casaco colorido. Os dois
companheiros estacaram e contemplaram a
festa, cheios de admiração. O velho fez-lhes
sinal para entrarem também na roda,
enquanto o povo pequeno abria,
prazenteiramente, a roda, para dar lugar a
ambos. O ourives, mais expansivo, aceitou
de imediato. O alfaiate, tímido, hesitou um
pouco, mas vendo como era divertido,
acabou por aderir também. A roda fechou-
se, novamente, e todos dançaram e pularam,
com gritos de alegria. O velho, tomando
uma faca que trazia à cintura, amolou-a,
olhando para os dois viajantes. Estes
assustaram-se, porém não tiveram tempo de
tomar qualquer atitude. O velho, agarrando
o ourives, escanhoou-lhe, com grande
rapidez, o cabelo e a barba. A mesma coisa
sucedeu ao alfaiate.
O medo dos dois desapareceu, quando
o velho, ao terminar, lhes deu uma amistosa
palmadinha nas costas, como se quisesse
dizer-lhes que haviam agido acertadamente,
ao deixarem que lhes fosse cortado o cabelo
e barba. Mostrou-lhes, depois, por gestos, um
monte de carvão, mandando-os encherem os
bolsos. Obedeceram, embora sem
compreender, e foram à procura de um lugar
para passar aquela noite. Ao chegarem à
planície, ouviram o relógio de um convento
próximo bater a meia-noite. No mesmo
instante, o canto parou e tudo desapareceu,
ficando apenas uma colina deserta ao luar.
Os dois caminhantes acharam um lugar
coberto de palha, onde se deitaram,
esquecendo-se de tirar dos bolsos os pedaços
de carvão, tão cansados estavam. Um peso
desacostumado fê-los acordar mais cedo,
enfiaram as mãos nos bolsos para deles tirar
o carvão, mas, com grande espanto,
encontraram, em lugar dele, pedaços de
ouro. Agora podiam considerar-se ricos.
Felizmente, o cabelo e a barba já haviam
crescido. Todavia, existe gente por demais
ambiciosa e, entre essa, estava o ourives.
Lamentou não ter enchido mais os bolsos,
assim teria o dobro do que coubera ao
alfaiate. O ourives, ávido de mais ouro,
propôs ao alfaiate pernoitarem mais uma vez
naquela região, para voltarem a ver o povo
pequeno e o velho no outeiro. O alfaiate
declarou:
— Já tenho o bastante e estou satisfeito!
Agora vou poder casar-me e ser um homem
feliz.
Mas estava pronto a esperar mais um dia
pelo companheiro.
À noite, o ourives pendurou mais
algumas bolsas à cintura e pôs-se a caminho
do outeiro. Encontrou, como na noite anterior,
todo o pequeno povo a cantar e a dançar, e
o velho cortou-lhe barba e cabelo e fez-lhe
sinal para que fosse buscar os pedaços de
carvão. O ourives não teve dúvidas de
embolsar tudo quanto cabia nos seus muitos
bolsos e voltou, todo feliz; cobriu-se com o
casaco e ferrou no sono. “Tanto se me dá que
o ouro pese”, pensou. “Suportarei tudo de
bom grado.” Adormeceu com a deliciosa
antecipação de acordar milionário.
Ao abrir os olhos, levantou-se apressado,
para examinar os bolsos. Mas ficou
abismado quando apenas retirou deles
pedaços de carvão. Decepcionado,
consolou-se, pensando que lhe sobraria pelo
menos o ouro ganho na noite anterior. Mas
ficou apavorado quando viu também aquele
transformado em carvão. Inadvertidamente,
bateu com a mão na cabeça e sentiu-a lisa e
calva, e assim estava o seu rosto.
Reconheceu, então, tratar-se de um castigo
pela sua ambição.
Enquanto isso, o alfaiate acordara e
agora consolava do melhor modo possível o
companheiro, banhado em lágrimas de
desespero.
— És meu companheiro de viagem e
amigo; vais ficar comigo e gozaremos juntos
da minha fortuna.
Manteve a palavra, mas o pobre do
ourives teve de esconder, dentro de gorros, a
sua cabeça calva, durante toda a vida.
Marie Tenaille (org.) - O meu livro de
contos - Porto, Asa Editores, 2001