CIRCUITOMATOGROSSO
CUIABÁ, 21 A 27 DE AGOSTO DE 2014
POLÊMICA
P
G
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DROGAS
Gestão pífia, drogados abandonados
Psiquiatra com 40 anos de experiência na área afirma que políticas de saúde pública para dependentes químicos carecem de
mais recursos e de gestão eficiente
Diego Frederici
O uso irresponsável
de drogas é um problema
que interrompe a vida de
homens e mulheres em
todo o mundo, sobretudo
os mais jovens. Dados do
World Drug Report 2014
,
estudo da Organização
das Nações Unidas
(ONU) que fornece dados
do consumo e tráfico de
entorpecentes ilícitos em
todos os países, revela
que em torno de 183.000
pessoas perderam a vida
em 2012 por motivos
relacionados a seu uso.
Embora haja sequelas
para a vida social e para
a saúde, não existem no
Brasil políticas públicas
eficazes para os
pacientes.
De acordo com o
psiquiatra forense
Zanizor Rodrigues,
“As pessoas olham a gente como bicho”
Sair em busca de
personagens para
escrever uma reportagem
sobre dependentes
químicos, mesmo para
uma pessoa como eu que
viu alguns amigos e
pessoas próximas se
deteriorarem pelo uso
desmedido de drogas,
provoca uma adrenalina
capaz de atenuar o forte
calor que fazia, como de
costume, numa tarde
ensolarada em Cuiabá.
Não que, a rigor, as
pessoas que eu buscava
no bairro Consil, no local
popularmente conhecido
como “Cracolândia”,
fossem diferentes
daqueles que normalmente
entrevisto, porém, seres
humanos nessas
condições passam por
uma situação limite de
abandono, de falta de
perspectivas pessoais ou
profissionais, que os
fizeram adentrar essa
espiral descendente do
consumo desenfreado de
entorpecentes. Gente
assim é acuada não por
meia dúzia de outras
pessoas, mas pela própria
sociedade, o que em
nosso imaginário pode
representar um alerta.
Ao pedir para o Zé, o
motorista do jornal, parar
o carro, percebo, à
distância, a situação
lamentável e triste dessas
pessoas, algumas delas
dormindo em colchões
espalhados pelas calçadas.
Quando me aproximo
tentando abordar algumas
delas, noto que as marcas
visíveis em seus corpos,
geralmente por facadas ou
balas de borracha, são
espelhos que refletem as
cicatrizes que cada um
deles traz também na
alma.
No entanto, diferente
dos dependentes que me
olham com curiosidade e
receio, um deles acena
para mim e numa
retribuição de seu sinal
peço para ele se
aproximar, uma vez que
estava do outro lado da
rua, que praticamente não
possui tráfego de
veículos. Ao me
identificar como
jornalista, o rapaz, que
pediu para não se
identificar, começou a
fazer um breve relato de
sua vida. Com uma
garrafinha pela metade de
pinga na mão, sem
camisa, de chinelo e short
sujo e surrado, o homem,
de 30 anos, surpreendeu-
me pela eloquência e
opinião, principalmente
para aqueles que estão
acostumados com certos
tipos de comentários
vistos na internet.
“Olham a gente como
bicho. Tenho vergonha de
pedir ajuda à minha
família, que tem até
médico. Sempre que a
gente tenta se aproximar
de alguém, a primeira
reação das pessoas é se
afastarem da gente”, diz
ele.
Quando pergunto
pela polícia, outra
surpresa.
“Essas apreensões de
drogas são apenas para
mostrar serviço. Isso não
resolve nada. Aqui nunca
faltou droga. A polícia
vem aqui, bate na gente,
rouba dinheiro de nós e
vai embora”.
Ao escutar o
chamado de uma mulher,
que ele identificou como
“minha companheira”, o
jovem se despede dizendo
para eu conversar com
outras pessoas. Nesse
instante foi que o
vislumbre de medo – que
no fundo sempre soube
ser infundado –
confirmou-se de uma
maneira esperada: nos
grupos de pessoas ali
reunidas, três ou quatro,
no máximo, assim que me
identificava, se
dispersavam, como se
temessem algum mal à
espreita, como se a
divulgação de suas
histórias pudesse deixá-
los ainda mais
vulneráveis.
Minha busca pelo
“personagem” não foi de
todo perdida, o que não
me impede de ser
acometido pela melancolia
e uma certa revolta por
causa da política ineficaz
de drogas, que transforma
doentes em vítimas da
repressão e que até hoje
ficam à mercê de
políticas públicas que não
enxergam o problema
como uma demanda
sanitária e social. A
adrenalina deu lugar ao
vazio.
Numa chácara de 2 mil
metros quadrados, com
acesso pela estrada que leva
ao Distrito da Guia, em
Cuiabá, reside a esperança
de jovens que deixaram
trabalho, família e estudos
de lado e que por um
motivo ou outro tornaram-
se dependentes químicos.
No entanto, reconhecendo
que precisavam de ajuda,
buscaram a comunidade
Terapêutica Valor da Vida,
para conseguir
empunharem novamente as
rédeas de suas vidas.
Anderson Michel
Mendonça, assistente social
e sócio-proprietário do
espaço, começou como
monitor na área e acabou
fisgado no trabalho de
recuperação de pessoas que
ele qualifica como o “efeito
colateral do capitalismo”.
“Trabalhamos com o
efeito colateral do
capitalismo, com pessoas
excluídas, que não dão
lucro, com aqueles que
roubam bolsas e que depois
não têm nem condições de
se manterem em pé”,
afirma.
O centro, que atende
apenas homens adultos,
existe há cinco anos e não
tem “fins religiosos”, de
acordo com Anderson,
destacando que a
dependência química é uma
doença “física, mental e
social”, de acordo com a
OrganizaçãoMundial de
Saúde. “É um trabalho que
envolve assistência social,
terapeutas, psicólogos,
psiquiatra e enfermeiro.
Cada residente tem seu
tempo de reinserção
social”, diz ele.
Fábio, um dos
residentes que pediu para
que seu verdadeiro nome
seja preservado, faz
tratamento há três meses
no Valor da Vida. O jovem
de 22 anos relatou que teve
seu primeiro contato com
as drogas aos 16 e que
havia chegado a um ponto
que tinha “perdido o
controle da sua vida”.
“Ficava isolado em
casa, sem comunicação
com ninguém. Às vezes a
gente pensa que está
sozinho, pois estamos
confusos. Mas nossa
família se preocupa
conosco, só temos que dar
o primeiro passo”, disse
ele. O assistente social
afirma também que há um
trabalho de reinserção na
sociedade de forma
gradativa, a “partir dos 30
dias, em que a família dos
residentes já pode vir aqui
visitá-los” além de passeios
de entretenimento, e que a
recuperação depende do
residente. “Temos
atividades culturais que
envolvem passeios inclusive
em Chapada dos Guimarães
e outros locais. Mas
costumo dizer que
oferecemos apenas 10% da
recuperação, os outros 90%
devem vir da família e do
residente”, diz.
“Valor da Vida” é
saída para dependentes
O consumo de
drogas ilícitas, ou
mesmo de substâncias
encontradas na farmácia,
tem sido objeto de
estudo de alguns campos
do conhecimento como
medicina, psicologia e
sociologia. Seja para
entender os tipos de
consequências
fisiológicas, psíquicas
ou sociais não apenas de
sua utilização, como
também os motivos e até
os potenciais benefícios
que a utilização dessas
substâncias podem
proporcionar, as pessoas
que fazem uso
indiscriminado de drogas
têm dificuldade de
compreender que a vida
não é uma “linha tênue”.
Para Ivete Pires
Ribeiro, psicóloga que
atuou no Centro de
Atenção Psicossocial
Álcool e Drogas de
Várzea Grande (CAPSad),
o que torna o paradigma do
uso de drogas complexo é
a “subjetividade de cada
um”, tendo em vista que a
relação que as pessoas têm
com o consumo dessas
substâncias é única, uma
vez que uns têm maior
dificuldade quanto ao
“discernimento da
realidade” e de que nossa
existência é permeada por
“altos e baixos”.
“Não trabalhamos a
droga e sim como o
sujeito percebe a si e ao
mundo. Alguns têm
maior dificuldade de
compreender a relação
que possui com a
droga, um objeto de
prazer, por isso, nas
dificuldades, ele tende a
buscar seu consumo”,
afirma ela.
Ivete afirma ainda que
por não conseguir trabalhar
esses momento de
infelicidade, os usuários
acabam tendo recaídas,
“pois buscam felicidade
plena, algo que não
existe”. Ela disse
também que algumas
pessoas conseguem
enxergar prazer em
outras atividades de sua
vida além das drogas,
entretanto as que não
detêm essa condição
“precisam de um
tratamento longo” para
conseguir se
reestruturar
psiquicamente.
A psicóloga teceu
críticas o poder público
dizendo que depois da
conquista do Sistema
Único de Saúde (SUS),
pouco mudou. “Quando
entra a politicagem, as
coisas se cristalizam e
profissionais sérios e
comprometidos com a
saúde pública ficam de
mãos atadas”.
“Vida não é linha tênue”,
afirma psicóloga
profissional da área de
saúde mental há mais de
40 anos, e professor
aposentado da
Universidade Federal de
Mato Grosso (UFMT), as
políticas de Estado
voltadas a pacientes que
sofrem dependência
química são “amadoras
no Brasil”, tendo em vista
tratar-se de uma área que
“carece de mais recursos
e de uma gestão
eficiente”, diferente do
que ocorre hoje, e Mato
Grosso não é exceção
nessa realidade.
“Não existem
projetos definidos, a
quantidade de usuários é
muito grande e não há
serviços suficientes, nem
ambulatoriais, muito
menos de internação, nos
casos-limite. Em Mato
Grosso, temos o drama
do complexo Adauto
Botelho”, diz ele.
Dados do
World
Drug Report 2014
afirmam que existem até
324 milhões de usuários
ilícitos desses
entorpecentes no mundo,
a maioria na faixa entre
15 e 64 anos e que em
sua maioria usaram
substâncias como
maconha, opioides (do
qual derivam a morfina e
a heroína), cocaína e
anfetaminas e
estimulantes, pelo menos
uma vez no último ano.
De acordo com o
estudo da ONU, ainda
que a maioria das
pessoas considere a
maconha como a droga
ilícita menos prejudicial,
tem havido um
crescimento considerável
de usuários que buscam
tratamento por
transtornos causados
pelo seu uso na última
década, principalmente
nas Américas, Oceania e
Europa. Mesmo assim,
os opioides, como a
heroína, permanecem no
topo entre aqueles que
buscam ajuda médica ou
psicológica por sua
utilização irresponsável
na Ásia e na Europa,
assim como a cocaína,
nas Américas.
No Brasil, o World
Drugs Report mostra um
dado preocupante: até
2009, cerca de 3% dos
estudantes universitários
faziam uso de cocaína.
Se levarmos em conta
que naquele ano havia
5.954.021 universitários
no país, de acordo com o
Censo da Educação
Superior do Ministério da
Educação (MEC), então o
número mínimo de
usuários dessa droga
dentro das faculdades
brasileiras é de 178.620 –
cifra que já deve estar
superada.
Entre as
consequências
fisiológicas para o
organismo daqueles que
usam drogas de maneira
irresponsável, ou já se
encontram enfermos,
Zanizor faz um alerta: “A
droga prejudica a
atividade cardíaca e o
metabolismo.
Dependendo da
quantidade, podem
ocorrer infartos
pulmonares, embolia,
morte súbita etc.”.
Sem assistência, dependentes químicos perambulam pelas
ruas de Cuiabá em situação de total decadência
Os poucos que conseguem se livrar do vício são atendidos em
entidades filantrópicas, geralmente mantidas por voluntários
Fotos: Mary Juruna