CIRCUITOMATOGROSSO
CUIABÁ, 28 DE FEVEREIRO A 6 DE MARÇO DE 2013
CULTURA EM CIRCUITO
PG 5
AMANTE DE OCASIÃO... UMA LENDA NOTURNA
Clóvis é historiador e
Papai Noel nas horas vagas
INCLUSÃO LITERÁRIA
Por Clovis Mattos
Anna é doutora em
História, etnógrafa e filatelista.
TERRA BRASILIS
Por Anna Maria Ribeiro Costa
KALU KALAPALO E VICTOR BRECHERET
Essa é a história de uma lenda... A
fêmea absoluta. Ela buscava o prazer
sem limites e sem barreiras. A
personagem predileta de tantas fantasias,
de tudo o que há de melhor na lasciva
imaginação. Olhar em seus olhos era o
mesmo que descobrir a cor do pecado, e
eles eram negros, profundos, atraentes,
cheios de frases prontas sem nenhuma
palavra a dizer. Todas com tons
indecentes, e em uma intensidade quase
hipnotizante. Sua respiração normalmente
ofegante delatava sua mente profana,
pecaminosamente convidativa. Não havia
nela nenhum resquício do pudor em outro
tempo ensinado. Seu mundo nunca foi
feito de definições, mas de sensações... E
o prazer que ela proporcionava era
capaz de satisfazer e destruir qualquer
doce ilusão, exatamente nesta ordem.
Quando saía em busca de aventura, não
havia preço que pudesse pagar o gosto
de ela mesma escolher sua próxima
vítima, aquele que se descobriria
destinado a viver de saudades...
Saudades eternas daquela mulher que
vinha, saciava-se e sumia sem deixar
rastros pra marmanjo nenhum poder
encontrá-la. Ela tinha um espírito livre,
despudoradamente livre para merecer ser
seguido. E ela sabia o quanto poderia ser
fatal pra um homem normal, mas havia
uma busca sem fim. O amante perfeito,
que poderia ser qualquer sujeito que a
aceitasse desse jeito. A amante de
ocasião. Nada cobrava, mas muito se
dava pelo simples prazer em se perder.
Na cama, na rua, ou onde quer que fosse
não era seu rosto que ficava memorizado,
mas seus gemidos jamais ignorados.
Alguns dizem que ela é um mito, conversa
pra maluco contar. Mas quem já provou
sabe que dessa história resta a angústia
de nunca mais a encontrar.
GIL FAÇANHA
“Sou mais do que se pode ver e
escrevo pra que as emoções não
transbordem de minha alma e se percam
nos canteiros da memória. Falo de dores e
amores, pra que nada tenha a chance de
tornar-se algum tormento. Exponho meus
lamentos, grito minha saudade e tantos
outros modos de sentir. Falo bem dos
sentimentos, mas nunca aprendi a falar
muito bem sobre mim mesma. Mas eu não
sou uma pessoa difícil de definir... Apenas
não consto em nenhum dicionário”.
Recorro a Victor Brecheret (1894-
1955) para diluir minha vontade de ver
Kalu Kalapalo. Isso porque o artista de
origem italiana dedicou parte de seu
conjunto escultórico aos indígenas, dentre
eles os da etnia Kalapalo. Um precursor
do Modernismo, recebeu forte apelo de
Mário de Andrade para trazer o Brasil
para dentro de sua arte. De 1940 em
diante devotou-se aos temas indígenas,
quando a terracota, a madeira e o bronze
foram escolhidos pelo artista para
expressar temas como
A luta da onça
,
O
índio e a suaçuapara
,
Mãe índia
,
Bartira
,
A índia
e o peixe
,
Luta de índios Kalapalo,
dentre outros. Em
A luta dos índios
Kalapalo
, de 1951, Brecheret representa o
huka-huka
, duelo competitivo que
evidencia a força e virilidade dos jovens,
praticado no ritual do
Kwarup
que
homenageia os mortos.
Conheci Kalu Kalapalo em 1982, ao
chegar à aldeia Nambiquara. Casada
com Raimundo, um Nambiquara, à época
ela já tinha para lá de quarenta anos.
Além de sua língua, falava o português, o
bakairi e entendia a diferenciação do
dialeto Nambiquara. Sempre esguia, seus
cabelos lisos cobriam suas costas e de tão
brilhosos pareciam ser azul-marinho.
Estava sempre a trabalhar: ora na roça,
ora no campo, ora no rio. Possuía um
saber fitoterápico impressionante.
Medicava-se, embelezava-se e perfumava-
se com plantas que ela mesma coletava.
Também cuidava dos outros. Para as
mulheres não indígenas, preparava
beberagens para trazer
crianças ao mundo, com
direito à escolha do sexo.
Kalu adaptou-se ao viver
Nambiquara trazendo um
pedaço do Xingu para
todos ao seu redor. E não
havia um que rejeitava seus
quitutes xinguanos! Foi com
ela que aprendi alguns dos
simples e eficazes segredos
do gênero feminino.
Kalu se foi...
Silenciosa como uma
folha que baila devagar
no chão. Mas ainda
posso sentir sua presença
no quentinho beiju de mandioca, que se
feito e saboreado ao pôr do sol toma
suas cores; no peixe moqueado; nos
belos colares de miçangas e nas
estampas dos vestidos das índias. No
Raimundo Nambiquara, no Loike
Kalapalo, na Luciana Kalapalo-
Nambiquara.